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Sentou-se à mesa para o almoço. Havia colocado uma almofada em sua cadeira para ficar mais confortável, pois as costas lhe doíam com o peso da barriga. Os talheres reluzentes estavam alinhados na horizontal com seu prato branco como um jogo da velha vencedor. O ronco era tanto que até seu vizinho sabia quando tinha fome, e vinha acontecendo frequentemente.
Pegou uma concha caprichada e serviu-se; levou a colher com os pequenos fragmentos à língua, mastigou, mas cuspiu-os de pronto. Desceu da mesa cuidadosamente para não cair e devolveu as bolinhas marrons, da cor de sua pelugem, ao saco. Aquela ração enfadonha já não lhe era mais apetitosa, até seu cheiro, já enjoativo pelas repetições diárias do abre-e-fecha do pacote de dez quilos, a fazia não querer comê-las, uma contradição ao que seu estômago necessitava; seu cérebro, entretanto, almejava pelo extravagante, pelo insano com sentido próprio somente para seus desejos. Sua língua ansiava por uma tapioca de goiabada com molho shoyo, um pequeno cozido bovino com amoras e tudo mais que sua imaginação – que atualmente vivia em seu bucho – poderia compor.
Josefina era uma cachorra moderna. Não se deslocaria até o mercado, não enfrentaria o cansaço de procurar pelos corredores infindos todos os itens de que necessitava e, então, descobrir que o que queria estava todo o tempo na primeira seção, logo na entrada; bufar, ficar zangada com o estabelecimento por não organizar melhor seus produtos ou placas indicativas e brigar com o gerente pedindo ressarcimento de tempo e paciência, chegar em casa, carregar as sacolas, massagear a cãibra para só depois poder cozinhar. Não; ela usaria o benefício da tecnologia a seu favor.
Foi então até o sofá, subiu nele com dificuldade, pois suas perninhas eram pequenas e teve que apelar para as unhas fortes e negras. Eram muito vantajosas para agarrarem-se ao assento de couro e davam-lhe outra regalia inigualável: eram pretas e brilhantes, um acessório fantástico que não a fazia ter que ir ao salão toda semana, pois pareciam sempre “feitas”.
Considerava-se, aliás, uma cachorra muito bonita. Uma vez, quando era adolescente e estava na fase de se arrumar bastante, colocou um vestido roxo florido de girassois amarelos que lhe marcavam a cintura fina e seus brincos amarelos de argola com penas. Achou que havia ficado fantástica e saiu de casa para passear no parque e tomar sorvete. No caminho avistou um dobermann sarado e, ao passar por ele, ouviu “com esse girassol em casa eu teria Sol à meia-noite”. Ela achou graça do comentário e decidiu dar atenção a ele, essa que virou uma amizade e pequeno namoro. Viveram alguns anos juntos até que o Orelha Caída – como Josefina o apelidou amorosamente por não conseguir levantá-las como outros de sua raça – decidiu sair com outras flores e a deixou sozinha. Ela ficou triste por um tempo, mas nada que abalasse sua autoestima.
Balançou a cabeça esquecendo o devaneio. Pegou seu celular no braço da poltrona e começou a digitar “abacaxi ao molho barbecue” ao lado da lupinha na barra de pesquisa e clicou em “pesquisa Google”; apareceram diversas receitas: a história do abacaxi, como fazer o molho barbecue, mas nada que unisse os dois itens que queria comer. “Vou tentar outra coisa”, pensou. Digitou agora “rolinho primavera recheado com bala de goma”, mas da mesma forma que a primeira tentativa, não logrou êxito.
Pensou então em algo estrondosamente delicioso como algodão doce com infusão de grão de bico, todavia, semelhante aos resultados anteriores, apareceram diversas receitas de grão de bico; entretanto, ao final da página surgiu um site interessantíssimo que informava a criação de um algodão doce de maconha. Por um momento pensou em comprar e já se imaginou deitada de barriga para cima vendo um jogo de vôlei sem precisar ligar a televisão, já que o efeito da erva poderia levar a bola imaginária de um lado para o outro e até fazer um ace sozinha, mas deduziu que poderia prejudicar o bebê então logo desistiu.
Pensou novamente em algo comestível e quando clicou na caixa de pesquisa para começar a escrever alguém foi mais ligeiro que ela: o próprio Google; esse que digitou na caixinha “você está prenhe?”. Josefina repetiu intrigada “prenhe? Não seria ‘prenha’” e o Google com toda sua sapiência e educação de pronto retrucou “não, senhora, é prenhe mesmo; palavra que deriva de prenhez...” Josefina, sem modos, logo o interrompeu “e você já ficou prenho pra saber? Falo do jeito que eu quiser”.
Logo que disse isso a caixa de pesquisa automaticamente apagou a conversa; ela julgou que havia ganho a “batalha ortográfica”, todavia imediatamente apareceu outra frase: “você está com fome de coisas doidas e quer encontrar tudo num só lugar?”. “Até que enfim esse Google me entendeu”, pensou, Josefina. E logo outra composição surgiu “você está com muita fome agora?”; “óbvio”, retrucou a canina e escreveu para o Google “quero comer um hot roll com fondant”.
Após a digitação Josefina reparou que o microfonezinho azul, vermelho, amarelo e verde ao final da barra de pesquisa se transformou num smile e, em seguida, apareceu o comando: “aperte ‘Estou com sorte’”. Josefina, animada e faminta, clicou no botão indicado sem vacilar.
Tudo ficou escuro. Já não sentia o bumbum no sofá, muito menos o peso do serzinho dentro de si. Era como se flutuasse em correntes de penas que carinhosamente moviam-se ao seu redor. Não podia vê-las, mas as imaginava, coloridas, macias, aconchegantes.
Depois de alguns segundos seus olhos ficaram embaçados e tudo ficou alvo. Conforme foi recobrando a lucidez da vista percebeu que o branco foi se afastando, se afastando e deu lugar a não mais somente um branco, era uma forma humana, branca humana, um homem alto e magro. “Oi, sou o Marshmallow, mas pode me chamar de Marsh”.
O homem branco na verdade tinha a pele revestida de marshmallow, não só ela, mas todos os pelos e cabelos - que estavam penteados fortemente para trás -; era praticamente um albino glicêmico. Usava uma roupa agarrada de cliclista e um avental, também da mesma cor. A única parte colorida eram seus olhos, círculos divididos em quatro cores: amarelo, azul, verde e vermelho, curiosamente as mesmas do portal de busca.
Marsh ajudou Josefina a se levantar e começou:
- Bem-vinda à Googleseimas, o lugar mais gostoso de se estar. Aqui você poderá encontrar tudo, literalmente tudo que gostaria de comer na entrega mais rápida do país. Porque a comida não vem de moto ou da cozinha!
- E como ela chega? – perguntou, curiosa, a cadela.
- Venha, vou te mostrar.
O lugar parecia um galpão sem divisórias, bem iluminado e tudo era branco, para variar; o chão, as paredes, o teto. Havia sinalizações pretas no piso indicando os caminhos a serem seguidos pelos visitantes, como uma pista de corrida. Josefina olhou para baixo e viu que na “largada” havia seu nome piscando em amarelo fluorescente com uma seta apontando o norte - deduziu que seria o norte, pois estavam ao fundo do barracão, quase com as costas coladas na parede.
Conforme caminhavam Josefina reparou que existiam retângulos grandes e altos, pelo menos para seu tamanho limitado de “cachorra salsicha”, dispostos ao longo do espaço. Marsh continuou:
- Essas são as nossas queridas Piscinas dos Desejos. Como pode ver – parou de falar por um momento reparando que ela não podia ver ainda por ser pequenina; deu uma risadinha consigo e ajudou Josefina a subir a escada para que pudesse enxergar. – Agora sim, como pode ver aqui encontram-se as mais maravilhosas conquistas do sabor!
Josefina olhou para a tal piscina. Havia um cachorro, ou uma cachorra, não conseguia distinguir, boiando extasiado no mar de delícias: arroz com abacate, asinha de frango com chocolate vegano, salgadinho de jaca, entre outros.
- Vamos, venha – disse, March.
Voltaram a caminhar e passaram por mais algumas piscinas. As misturas eram inusitadas e, conforme os nadadores iam imaginando, as comidinhas iam surgindo.
- Muitos cachorros famosos já passaram por aqui como a Lassie, Beethoven – tantos não sabem que o Beethoven na verdade era ‘Beethovana’ e inclusive chegou aqui prenha.
Josefina riu, mas ao mesmo tempo ficou desiludida. Gostava muito dos filmes do Beethoven – ou da Beethovana - e sentiu-se mais uma telespectadora enganada.
- Veja, essa é uma king size pool, tivemos que fazer uma ampliação das dependências quando vieram os 101 Dálmatas. Quase ficamos sem estoque.
Um barulho mastodôntico interrompeu a fala de Marsh.
- Ah, sim, desculpe minha indelicadeza. Fico maravilhado com o que produzimos aqui que às vezes acabo esquecendo que a prioridade é sempre do visitante. Vamos, vou te levar à sua.
Após mais alguns passos chegaram em uma piscina menor que as demais, mas ainda sim imponente. A lateral tinha lantejoulas cintilantes e a seta do trajeto agora indicava “JOSEFINA” em looping.
A cachorra subiu os degraus e, com o apoio de Marsh, entrou cuidadosamente. Estava vazia. No fundo havia apenas espuma branca.
- Muito bem – disse ele – agora sente-se, relaxe e feche os olhos.
Ela obedeceu.
- Canalize toda a sua fome para seu cérebro e concentre-se. Pense em tudo o que deseja comer e visualize em sua cabeça, ainda de olhos fechados, por favor.
Ela seguiu suas instruções uma vez mais. Eram tantas coisas que podia jurar que sua cachola estava mais pesada.
- Pronto?
Sentiu umas cutucadas no traseiro, algo estava a fazendo levitar. Não sentia mais a espuma, parecida que estava envolta por...
- Agora abra os olhos! – gritou, Marsh.
Abriu as pálpebras e automaticamente a boca com a surpresa.
Sua piscina estava repleta de tudo que imaginou. Os famosos algodão doce com infusão de grão de bico – ou de maconha, só saberia experimentando e, pela cara apetitosa, valeria o risco -, hot roll com fondant, tapioca de goiabada com molho shoyo, o pequeno cozido bovino com amoras, amendoim japonês de dois quilos etc.
Começou a nadar e mastigar tudo de uma vez numa velocidade incrível como o Pac-Man. Comeu tanto que não conseguia mais mexer o maxilar. Sua gengiva estava extasiada; poderiam arrancar-lhe os dentes que nada sentiria. De repente sentiu uma dor no ventre, nas costas e um puxão na barriga. Gritou. Era o bebê sendo empurrado pela digestão, isto é, contrações.
Marsh correu para ajudá-la. Apesar de ser branco, mas não médico, tinha experiência. Pegou-a no colo e a colocou em um colchonete fora da piscina. Segurou sua pata com carinho e pediu que canalizasse sua força. Josefina, guerreira, empurrou o que parecia ser um bloco de cimento de tão difícil e apagou de exaustão.
Acordou em sua casa, em seu mesmo sofá. Respirou fundo. Sua barriga grande tinha sumido. “Será que foi um sonho?”, pensou. Olhou para o lado viu um carrinho de bebê com um habitante. Um cachorro neném diferente. Suas patas eram de rolinho primavera, o corpo de algodão doce com pintinhas de bala de goma, a cabeça de amendoim japonês gigante, olhos de hot roll e orelhas de tapioca.
Josefina sorriu.
- Vou chamá-lo de Misturinha, e deu-lhe um beijo amoroso.
Essa escritora sem irá fazer a diferença podem crer
Eu simplesmente ameeeeeiiiiii!!!!!!!!! Muito legal! Kkkkkkk. Nunca li nada nesse estilo!!!