![](https://static.wixstatic.com/media/d68e26_1fce08f3f33e4f389eb383fbe287a318~mv2.jpg/v1/fill/w_980,h_567,al_c,q_85,usm_0.66_1.00_0.01,enc_auto/d68e26_1fce08f3f33e4f389eb383fbe287a318~mv2.jpg)
Sentada em seu sofá roxo de camurça apreciou a maciez e o calor da trama, deslizando lentamente a mão pelo assento encontrando o nada ao lado de sua perna, sentindo a angústia da vacância de seu coração. Ansiava preenchê-lo. Há trinta e nove anos estava tentando; tinha tido alguns namoricos, aqui e ali, mas nada que fizesse um pulsar insano no peito, o descontrole da fala e o respirar suspirante.
Considerava-se ainda jovem e atraente, mesmo beirando os fatídicos – pelo menos para ela - quarenta: fazia pilates, academia, comia alimentos ricos em fibra e ignorava os processados. Tinha a pele dourada preenchendo um corpo naturalmente voluptuoso, os cabelos ondulados castanho-escuro e olhos encantadores.
Não sabia por que estava sozinha e ao mesmo tempo tinha uma teoria; era muito exigente. Queria que a mesma pessoa tivesse os seguintes atributos: sapiência, fosse amável, romântica, apreciasse as artes, fosse trabalhadora, amasse macarrão ao molho pesto – pois era sua comida favorita -, tivesse entre um e oitenta e três e um e oitenta e nove centímetros, usasse somente jeans com lavagens escuras - odiava as lavagens claras, pois qualquer sentadinha em falso já batizava o tecido - e tinha que calçar quarenta e três; nem quarenta e dois e meio muito menos quarenta e quatro: quarenta e três. “Isso é ser muito exigente?”, pensou. Por mais específico que fosse ela sabia que havia alguém assim, exatamente assim, perfeito para ela.
Joana fechou os olhos e, ainda com o movimento circular acariciando o estofado, imaginou o Pedro ali acomodado ao seu lado; por enquanto sua habitação mais próxima a ela era apenas a da cadeira de trabalho. “O que posso fazer para mudar isso e trazê-lo rapidamente para mobiliar meu coração?”, indagou a si.
Já havia investido nas indiretas; uma vez, na hora do almoço, com o espaguete que sobrou no prato desenhou cuidadosamente um coração criando uma arte realista amorosa ao colocar o molho de tomate no centro. Eles não tinham pesto, inclusive ela achava muito difícil encontrá-lo fora de casa nos self-services da vida. Talvez fosse pelo preço das nozes, ou atualmente do azeite. Fosse o que fosse a certeza era que o verdinho era muito mais fácil de fazer que o vermelho, o de tomate verdadeiro, claro, quando se tira sua pele e o ferve lentamente com as especiarias. Esse processo demorava demais. Ela gostava mesmo do pesto porque era mais rápido de fazer, durava mais, era só colocar um tiquinho de azeite em cima dele que conseguiria habitar a geladeira por pelo menos um mês.
Uma vez, de propósito, Joana deixou um que havia feito no refrigerador por três meses só para ver o que acontecia. Foi difícil distinguir, afinal o bolor e o molho têm a mesma coloração. O fator decisivo foi o gosto e a careta que a moça fez ao experimentar um pouquinho.
Joana esperou que o Pedro acabasse de comer e empurrou cuidadosamente com a ponta dos dedos seu prato para mais perto do dele. Ele simplesmente olhou do prato a ela e disse: “Joana, você não vai comer?” e abocanhou o que faltava. Ela ficou frustrada, mas não desistiu. Desistir não era com ela, ainda mais agora que havia encontrado o que sempre quis em um homem. “Ah, Pedro...”, suspirava.
Teve outra vez que estavam no escritório e deveriam receber o novo colega de departamento; assim que ele chegou todos o cumprimentaram e quando chegou a vez dela olhou em volta para ver onde o Pedro estava, viu que encontrava-se ali no cantinho da sala conversando com o cara da administração. Num ato de coragem disse em voz alta apertando a mão do recém-contratado: “Prazer, Joana da contabilidade e a futura esposa do Pedro”. A distância não era tão grande assim e ela achava que dessa vez ele iria perceber – e ouvir, claro - mas não, Pedro nem se deu conta e continuou a conversa com o colega como se nada tivesse acontecido. O cara novo ficou vermelho pela situação e a moça do RH que o havia trazido sacudiu a cabeça baixa desenhando um “não” no ar, pediu desculpas e, antes de sair, sem que Joana se atentasse, deslizou um cartão para dentro de sua bolsa.
Com o passar dos dias Joana deu um tempo com as diretas e explícitas, pois ainda não havia tido sucesso algum, nem ao menos um “talvez ele tenha percebido algo”.
Ainda no sofá, deixou de lado seu devaneio caloroso e retomou à realidade de suas retinas. Precisava agir de forma diferente. “Mas o que fazer”, pensou? Levantou e começou a andar de lá para cá. Era um pouco desajeitada e no grande trajeto de um apartamento de cinquenta e três metros quadrados esbarrou em sua própria bolsa, que foi ao chão, e dela saiu um cartão bem colorido não antes visto. “O que é isso?”, disse em voz alta. Pegou o retângulo e leu “Carmencita, amarração do amor” e ao final do cartão, impresso em letras garrafais, “amor 100% garantido” e um telefone ao lado. Segurou o cartão com uma firmeza descomunal próximo ao corpo, na altura de seu dorso, e olhou ao redor para garantir que não havia ninguém ali que pudesse retirá-lo dela.
“Como foi que...?” disse. Não sabia quem havia colocado o cartão em sua bolsa. “Será o destino?”. Não ligou, não importava. Amarrar-se-ia à esperança. Correu para pegar o celular. Não enviaria WhatsApp, até ela terminar de digitar a mensagem e retornarem seria uma demora tremenda, Joana tinha pressa.
Discou o número, chamou uma vez... Joana, apreensiva, batia com a mão na própria perna enquanto caminhava em círculos. Ninguém atendeu. A angústia dilacerava seu ser. Chamou duas vezes... Joana colocou o polegar e o indicador acima do nariz, entre as sobrancelhas, e friccionou-os cerrando os olhos para que a concentração auricular ganhasse força... Ninguém atendeu ainda. Chamou três vezes... o “tum” prolongado que escutava pelo aparelho a afligia. “Por favor atendam...”, clamou. Dificilmente atenderiam na quarta chamada que se aproximava, julgou.
Joana levantou o ombro em direção à orelha onde encontrava-se o aparelho e segurou-o somente com o queixo. Deixou as mãos livres, balançando-as em lamento. Não aguardaria, era angustiante e decepcionante demais, mas era tarde; o quarto toque veio à tona simultaneamente com o ruído da campainha distraindo-lhe brevemente do lamento. “Ué, não interfonaram... deve ser algum vizinho que confundiu a casa”. Mas antes de ir ver quem era pelo olho mágico a porta simplesmente foi escancarada. “Eita, eu não tranquei a porta?”, pensou.
Carmencita entrou imponente com suas pernas curtas, mas fortes; não tinha mais que um metro e quarenta de altura e mais que a mesma medida de largura. Vestia-se com uma blusa-cortina feita com os retalhos das sedas mais impactantes que Joana já vira. A calça, era de um rosa pink um pouco mais discreto e nos pés sandálias brancas de salto alto quadrado contrastavam com suas unhas vinho celestial, brilhantes, mas não tanto quanto seus brincos e inúmeras pulseiras douradas de pedrarias. Seu cabelo chanel volumoso era ruivo e encaracolado nas pontas, que pulavam como um algodão doce conforme caminhava pela sala. A fofurinha colorida esvoaçante sentou-se no sofá.
- Olá, Joana, minha querida!
- Quem é a senhora? – Joana esqueceu que havia ligado para alguém e que a porta estava aberta, só se concentrou naquela figura díspar em sua frente.
- Sou a Carmencita e vim ajudar a resolver seu problema – falou, dando duas palmadinhas na poltrona ao lado. – Sente-se, minha querida.
- Mas, como? Eu liguei para a senhora e estava chamando, mas ninguém atendeu...
- Assim é mais rápido.
- Então, dona Carmencita – disse Joana sentando-se ao lado dela -, tem um homem do meu trabalho, o Pedro...
- Nada de Pedro, Carmencita é rápida e eficaz, minha menina. Trago o amor cem por cento garantido - disse sorridente. - Vou te mostrar opções muito melhores, veja:
Carmencita estalou os dedos e um reggaeton começou a tocar. Joana não tinha rádio. “Será que está vindo do seu celular?”, pensou. “Essa senhora não parece ter idade pra ter um aparelho com uma música dessas. O som deve estar vindo do além... esse além aí deve estar bem animado então”, concluiu o devaneio com uma risadinha sarcástica. Um mulato entrou pela porta da sala. Não era somente um homem, era...
- Esse é o Jorjão, “o malemolente”!
Jorjão começou a dançar, tinha mais ritmo que a música. Vestia uma camisa branca transparente que ficava cada vez mais invisível com todo aquele suor. Era possível contar as dobrinhas de músculos daquele peitoral. Vez ou outra balançava seu cabelo black power na batida do som com uma graça que só um profissional tem. Remexia o quadril e ia em direção à Joana soltando piscadinhas e mordidinhas no lábio, essa que não sabia se achava engraçado ou se levantava na hora para gingar também.
- Abençoado ele, não? – falou a senhora.
- Sim... – disse Joana ainda hipnotizada com o peitoral delineado do moreno - não... sim, quer dizer, não, dona Carmencita! Mas é que o Pedro tem uma beleza natural, sabe? Claro, não é tão forte quanto o Jorjão, mas pratica slackline três vezes por semana, o que faz com que ele tenha um bom preparo físico.
Carmencita, recebendo o feedback negativo, balançou as costas da mão direita ao vento, “empurrando” o dançarino, que saiu da sala esbamboando o que lhe restava da vestimenta empoçada.
- Nada de Pedro, minha cara! – Carmencita disse estalando os dedos mais uma vez.
Joana escutou um barulho vindo da cozinha; era o de rodinhas como daqueles carrinhos que carregam as malas em aeroportos, transitando e pipocando pelo chão desgastado, atrasados para entregarem os pertences dos donos no portão correto de voo.
De supetão surgiu um carrinho similar ao que ela havia imaginado; só que ao invés da mala com roupas havia em cima dele uma toalha branca com uma bandeja inox de tampa brilhante como nos hotéis cinco estrelas. Não vinha sozinho, era empurrado por outro homem, não menos bonito que o anterior, mas um pouco mais baixo, de pele mais clara e cabelos curtos escondidos no toque blanche em sua cabeça.
- Esse é o Felipe, “o cozinheiro” – disse, Carmencita, sorrindo.
Ele abriu a bandeja, pegou o prato que lá descansava e apresentou a ela num gesto cavalheiro de oferenda: penne ao molho pesto. Joana viu a encantadora cor do molho, a fumaça subindo num rodopiar delicado e inalou aquele cheiro que tanto amava.
Cozinhar bem não estava nos seus pré-requisitos de homem ideal, mas admirava os que sabiam. “Que charme!”, pensou. Felipe sentou-se ao lado dela e serviu-lhe um pouco do macarrão com um garfo colocando-o em sua boca. Joana fechou os olhos para saborear. Nunca havia comido um molho tão gostoso e aromático; as nozes trituradas do tamanho certo acariciavam suas papilas deslizando graciosamente para seu estômago. Abriu os olhos e somente nesse momento reparou que Felipe estava usando jeans escuros. Seu coração ficou balançado.
- Viu, menina, que delícia esse macarrão!? – disse, Carmencita - Felipe cozinha como ninguém e poderá executar todos os seus pedidos gastronômicos.
- É tentador... já imaginei aqui tudo o que gosto de comer. Ele poderia fazer também dadinho de tapioca com molho apimentado de manga...
Felipe piscou para Joana e tirou dos bolsos de seu dólmã uma manga e uma pimenta. Foi o que bastou para ela voltar a si.
- Ah, Carmencita, essa manga me lembrou agora que o Pedro começou algumas aulas de culinária semana passada. Ele chegou um dia desses com uma mancha amarelada na gola da camiseta. Eu perguntei pra ele como tinha se sujado e ele me explicou que havia tentado descascar uma manga com a faca na aula, mas que espirrou um pouco nele porque ainda estava praticando e não havia conseguido fazer com perfeição. Que esforçado, né? - falou encantada.
Carmencita revirou os olhos e, entendendo o recado, balançou a cabeça duas vezes colocando o queixo em riste para que Felipe desaparecesse como Jorjão. O cozinheiro empurrou tristemente o carrinho de volta de onde havia surgido; talvez tivesse mais sucesso no aeroporto.
Se Joana não desistia fácil, Carmencita muito menos; inclusive, considerava-se irritante nesse ponto. Nunca deixou um trabalho mal sucedido e não seria esse a estreia. Estalou novamente os dedos e pisadas surgiram na varanda.
Joana olhou para trás para entender o que estava acontecendo agora e o viu.
- Apresento a você: Lauro, o artista.
Cabelos compridos perfeitos hidratados, ondulados e castanhos com mechas mais claras naturais nas pontas criadas pelo sol esvoaçavam em suas escápulas. Vestia uma camisa de linho rosé com um decote em “v” aberto até à barriga contrastando com sua pele branca. As calças largas eram do mesmo tecido, mas de um bege claro. Tinha a barba por fazer num tom mais ocre do que suas madeixas. Deu um lento passo a frente com os pés nus e começou a declamar com os braços abertos:
“Não chame o meu amor de idolatria
Nem de ídolo realce a quem eu amo,
Pois todo o meu cantar a um só se alia,
E de uma só maneira eu o proclamo.
É hoje e sempre o meu amor galante,
Inalterável, em grande excelência;
Por isso a minha rima é tão constante
A uma só coisa e exclui a diferença.
'Beleza, Bem, Verdade', eis o que exprimo;
'Beleza, Bem, Verdade', todo o acento;
E em tal mudança está tudo o que primo,
Em um, três temas, de amplo movimento.
'Beleza, Bem, Verdade' sós, outrora;
Num mesmo ser vivem juntos agora.”
Sua melodiosa voz rouca encantou os ouvidos de Joana. Enquanto poetizava ela percebeu que Lauro tinha uma pequena cicatriz no queixo que se mexia conforme ele recitava. Adorava cicatrizes; considerava-as atraentes. Estava hipnotizada pelo soneto Shakespeariano que tanto conhecia. Já se imaginou no altar com ele, partindo para a lua de mel sem volta.
Lauro tirou de dentro de sua camisa uma aquarela, um pincel e um papel e desenhou uma “natureza-morta” impecável. Joana ficou deslumbrada com tamanho talento. Ele desvirou o papel e com um movimento rápido de artista escreveu algo que, por um instante, só ele via. Caminhou para mais perto de Joana e lhe mostrou o que havia redigido: “calço quarenta e três”.
- Não é possível! – gritou, Joana, impulsionada pelo êxtase de coincidências.
Foi um choque de atratividade. Seria ele o homem perfeito que sempre quis? Parou para pensar um pouco. O Pedro confundia poema com pomar, era de exatas, formado em ciências contábeis e só gostava de leitura técnica, mas era o Pedro, o conhecia tão bem e suspirava por ele.
- Lauro... – começou, Joana – você realmente conhece de poesia e pinta muito bem. Qualquer garota se apaixonaria por você num instante, mas ainda assim o Pedro...
- Chega de Pedro! – disse brava, Carmencita. - Então fica com os três rapazes, mulher, você vai gostar de um, senão o problema é com você e vou te amarrar para alguém - esbravejou mexendo nos cabelos cheios e encaracolados – MEU SERVIÇO É CEM POR CENTO GARANTIDO! – e saiu da casa dela batendo a porta.
Adorei!!!! Você escreve lindamente!!!!!