Queria por tudo se livrar do sol que queimava-lhe a nuca. Entrou rápido na loja e pisou forte no tapete esgarçado. Quase desequilibrou, mas com surpreendente agilidade para sua altura, parou a centímetros do piso de madeira sem derrapar. Evitou uma queda, que considerou poder ser grande pela distância dos seus joelhos ao solo. Olhou para baixo e decidiu que o tapete estava assim não por conta da pressão exercida pelo impacto do seu tênis 43, mas pela sofrença causada pelo astro. “É, foi ele”, pensou. E “ele” que também havia deixado uma bola cheirosa embaixo de seus braços em pleno início matutino. “Estão adulterando esses desodorantes”, refletiu. Caminhou até o balcão e disse:
- Bom dia, Antônio – pronunciou, lendo o nome escrito em fonte verde escura no crachá branco e antigo do atendente. Já não se viam quase as letras, estavam gastas pelo uso diário e pela fricção com inúmeras canetas que lhe raspavam a tinta, acomodadas em uma pasta marrom de crocodilo. Se era verdadeira ou falsa não saberia dizer, não era conhecedor de pastas. Nunca usou esse tipo de adereço, guardava tudo que precisava no bolso da calça. O que de certa forma era prático, mas ao mesmo tempo irritante quando os esquecia e a máquina de lavar o lembrava cuspindo minúsculos papeizinhos ao final do “ciclo rápido”. O pior era ter de sacudir a calça em sua pequena varanda; eram dois trabalhos, o de desgrudar a celulose molhada na fibra e limpar a sujeira do chão. O baixinho atendente vestia uma camisa polo cor de gema, o que lhe recordou do calor demasiado e o fez automaticamente proteger a nuca da luz já imaginária, visto ter saído de seu contato no momento em que havia se aproximado da bancada.
- Bom dia, senhor, em que posso ajudá-lo?
- Tenho uma reserva em nome da Transporte Urbano – era a empresa em que trabalhava, logicamente com o nicho de transportes, como perceberam.
- Ah, sim, me empresta sua CNH por favor? – disse estendendo a mão peluda e olhando a foto do rapaz, que parecia um adolescente ainda cheio de espinhas. Se chutasse, diria que teria no máximo vinte e dois anos. A data de nascimento impressa no documento contrariou sua suposição afirmando vinte e cinco.
Antônio se dirigiu até a máquina de fazer cópias para scannear a “capivara”. Enquanto isso informou ao rapaz apontando ao pátio:
- Hoje nós temos para você um belo Mobi Like vermelho, quatro portas, com tocador de CD’s ou entrada USB...
“Pra que eu quero um tocador de CD’s?”, pensou Fernando. Era jovem, mas vivido suficiente para saber que ninguém mais usava isso; além de não conseguir guardar no bolso. Era totalmente inútil em sua opinião. O atendente continuou:
- ... e motor 1.0, “simplinho”, mas anda bem.
- Tá ótimo esse mesmo – respondeu prontamente Fernando, que tinha pressa para levar o material ao seu cliente e não se atrasar para a reunião com os demais colegas.
- Maravilha! É só assinar aqui e já trago a chave.
Terminando as firmas foram até o pátio, fizeram a inspeção no veículo, que parecia em plenas condições de viagem, nem tanto de “saúde” para subir as montanhas da zona norte de São Paulo com seu “1.0”.
Fernando se despediu do atendente e com fé no freio de mão seguiu viagem. Após alguns dias seu Diretor delegou a ele mais uma entrega importante a um dos maiores clientes da empresa. Precisaria novamente de um carro. “Tomara que tenham um melhor dessa vez”, pensou, lembrando de todas as vezes que o “simplinho” desceu a ladeira na subida e fez as caixas voarem do banco traseiro ao porta-malas e ele teve que contornar a situação controlando, como maestro, o freio e o acelerador. Depois dessa aventura se considerava exímio piloto e se por acaso seu chefe pedisse um voluntário para dirigir um caminhão para alguma entrega ele se canditaria sem hesitar. Retornou à mesma loja, que ficava próxima à sua casa e lá estava Antônio:
- Olha só quem voltou! Bom dia, senhor Fernando – disse. O cumprimento deveria ser ao contrário na verdade. O “senhor” para o Antônio.
- Bom dia, Antônio, como vai? Tenho outra reserva para hoje.
- Sim, em nome da Transporte Urbano. Eu vi no sistema – indicou dando uma risadinha. Pela cara de espanto que o jovem fez julgou que os cabelos brancos bloqueariam sua eficiência tecnológica. Estava enganado - Muito bem, deixe-me ver... hoje para você tenho um Ônix hatch 1.0, preto. Hum... tem muito material para levar? – perguntou, olhando a caixa supostamente pesada que o rapaz segurava com suas manzorras. Continuou:
- Vai ser difícil subir as ladeiras com esse modelo – falou coçando o que lhe restava da barba por fazer. - Já sei! Tenho outro especial para você!
- Ah é? – falou animado o jovem.
- Sim, ele é ótimo nas ascendentes, curvas e não derrapa, consegue fazer viagem de uma dia inteirinho e só precisa descansá-lo um pouco à noite; e aguenta até 80kgs. Você pesa quanto? – disse, olhando de cima a baixo o corpo magro de Fernando e respondendo retoricamente – ele aguenta. Você tomou banho com xampu sem cheiro?
- Sem cheiro?
- Sim, porque Fedido é alérgico à lavanda e semelhantes – ratificou seriamente com tom de censura.
- Fedido?
- Nosso FORTE gorila. Mas você teria que ir para a sala ali atrás para fazermos o procedimento de locação – disse levantando o antebraço e balançando-o no sentido de suas costas com o polegar em riste como se quisesse indicar um quarto secreto –, e sem ficha - acrescentou, rindo cinicamente.
Com olhos mais incrédulos que amedrontados Fernando respondeu:
- Acho que ficarei com o Ônix mesmo.
- Não quer nem dar uma olhadinha? – e vendo a cara azeda do rapaz, continuou - Ah, bem, se quer assim... – falou o atendente, olhando triste para o quartinho como se ele mesmo, além de Fedido, tivesse sido rejeitado - ... o importante é sua satisfa...
BIP! Fez um barulho e Antônio parou subitamente de falar e um largo sorriso abriu em seu rosto enrugado.
- Olha só, Fernando! Como o senhor tem sido um cliente assíduo o sistema liberou um upgrade! Que maravilha! – passou os olhos e o queixo pela tela descendo a barra de rolagem - Hoje então tenho o excepcional Novo Versa sedan, automático, num cinza metálico que brilha mais que minha careca!
- Ótimo – respondeu secamente, aliviado por não ter sido obrigado a locar o primata.
- Estou muito feliz pelo senhor! – disse, indo apertar as mãos do cliente e entregar-lhe a chave.
Após meses de entregas, locações semanais de veículos cada vez maiores, mais possantes, mais brilhantes e “upgrados” os dois se tornaram praticamente melhores amigos, a não ser quando Antônio mencionava Fedido ou a Malcheirosa – sua nova companheira – Fernando retornou à loja para mais uma semana de trabalho.
- E aí, seu Antônio, o que tem pra mim hoje?
- Hoje tenho o super Volvo S60 com 407 cavalos, motor 2.0, vai de 0 a 100 km/h em 4,4 segundos num dourado lunar perolado que é só charme.
Os olhos de Fernando brilharam mais do que parecia ser a tal cor do veículo. Quando... BIP!
- Mas veja só... – disse Antônio surpreso – Não pode ser!
- O quê?
- Você teve um super upgrade!!!
- Sério!?
- Com certeza. Muito melhor que o Volvo.
- Não é possível! O que pode ser melhor que isso? – disse, Fernando com a esperança de não ser o macaco ou outro animal sequer.
Senhor Antônio, sem dizer nada, foi até uma gaveta do lado oposto de sua bancada; nela havia entalhada a palavra “ESPECIAL”. Tirou uma chave enferrujada pequenina e simples de seu próprio bolso e a abriu. Fernando, que já era alto, teve que esticar-se na ponta dos pés para vislumbrar e de dentro dessa gaveta havia outra chave, esta de amarelo berrante impecável com os dizeres “UPGRADE ESPECIAL” e uma caixa de madeira em roxo fosco. Deduziu que deveria ser algo realmente muito especial. O atendente abriu o receptáculo e num ligeiro movimento pegou-o com a mão fechada impossibilitando que o jovem entendesse do que se tratava.
- Toma, garoto, seu upgrade especial – disse, como um pai que entrega um presente de aniversário a um filho que sempre o desejou e esperou longos meses para recebê-lo. Um pouco diferente do que sentia Fernando, que não sabia o que estava ali em sua mão. O filho, pelo menos, tem uma aposta, já que deve ter contado diariamente ao pai o que queria de presente. Antônio esticou o braço com a mão fechada indicando com a cabeça para que Fernando abrisse a sua. O garoto o fez e Antônio abriu a dele deixando o objeto alocar-se na do cliente e disse finalmente:
– Você vai ficar com as chaves da loja.
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