![](https://static.wixstatic.com/media/d68e26_5448e0b4934d470d93420f3132d443f9~mv2.jpg/v1/fill/w_980,h_1283,al_c,q_85,usm_0.66_1.00_0.01,enc_auto/d68e26_5448e0b4934d470d93420f3132d443f9~mv2.jpg)
“A coleção do Museu do Ouro, iniciada em 1939 pelo Banco de la República, nos aproxima da vida social e cultural dos grupos humanos que viveram na Colômbia há 2.500 anos até a conquista europeia, com destaque para os povos zenúes, exímios criadores de canais de drenagem, o que lhes permitiu controlar enchentes...”
Lia as informações na parede do museu com seus dedos tentados a seguir as frases; achava muito difícil distinguir e compreender o texto de letrinhas tão pequenas somente com os olhos, principalmente àquela distância da parede. Considerava injusto não poder ler de onde quisesse. “E se tivessem problemas de visão ou esquecido os óculos?”, refletiu. A fraca luz amarelada fazia das sílabas montanha-russa em turvo deslize. Havia uma fita vermelha, a guardiã da leitura, que delimitava o espaço máximo entre o escrito e o pé do visitante. “Se são estátuas mortas não reclamarão se ficarmos mais próximos baforando nelas ou clarearmos a sala, não?”, pensou. Enquanto divagava sua esposa entretinha-se com as esculturas reluzentes ao lado.
O casal adorava viajar pelo mundo e conhecer culturas distintas e simultaneamente similares, a julgar pela forma bisonha de ler as benditas palavras impressas em limitada escala. Estavam de férias e dessa vez decidiram deixar o mar grudento a outros apreciadores e as caipirinhas e os camarões no espeto para outras bocas; iam explorar culturas. Não gostavam de algo ousado como adentrar cavernas de capacete, colete e lanterna correndo o risco de serem engolidos por desabamento de terra e morrerem na obscuridade sem direito a um cortejo lúgubre de seus familiares. Apreciavam o tranquilo, a praticidade menos arriscada de levar até eles os ex-habitantes do buraco-soturno; num lugar confortável como um museu. A temperatura interna estava bem mais agradável que a da praia abdicada. Ele curvou-se, jogando os quadris para trás e os cabelos lisos e fartos para os lados com auxílio das mãos, insistindo na leitura da mostra.
“Sua exposição permanente conta com quatro salas que oferecem diferentes perspectivas sobre as coleções patrimoniais arqueológicas de ourivesaria, cerâmica, líticos e madeiras...”
Estavam em uma sala retangular de chão de mogno, quando olhavam para baixo viam seus próprios rostos num reflexo impecável. As paredes cinza-escuras ficavam na penumbra intensificando o foco nos dez iluminados homenzinhos de pedra esculpida, alegoricamente dispostos, formando um exército jazido de sessenta centímetros de altura fixados em base também de madeira. O marido, impressionado com as obras, aproximou-se para observar melhor e reparou que alguns tinham feições e tons equivalentes, outros pareciam índios sem braços. Havia um urso que considerou maléfico e outro semelhante ao lobo da “chapeuzinho vermelho”, inclusive com a “touca da vovó” versão rústica; seu focinho beiçudo ia quase de orelha a orelha e parecia que ele estava com catapora, coitado, pois a totalidade de seu corpo estava cheio de protuberâncias redondas. Ao observar atentamente a estatueta viu que eram furinhos esculpidos e deduziu que o canídeo haveria, de fato, ter morrido de catapora e deveriam ter esculpido essa forma grotesca do defunto sem consultá-lo. Já ao final da fila dos pequenos nojentinhos – como os apelidou - tinha um bem, mas bem menor que os outros, com trinta centímetros no máximo. Sua cabeça era larga e achatada como um pug gordinho sem pescoço e usava um pesado chapéu que auxiliava a aprimorar o aspecto plano. Tinha barba, bigode, e seu nariz era vistoso como dos negros e os olhos grandes e alertas. Sua bocarra era composta por inúmeros dentes - se os humanos adultos têm, em média, vinte e oito, esse pequenino devia ter trinta e oito mil -, sendo quatro maiores que saltavam para fora, não certinhos um ao lado do outro como um coelho, pulavam algumas linhas como as teclas pretas do teclado. Suas mãozinhas entrelaçadas acima da barriga descansavam. O marido olhou uma vez mais para a sua caixola e frisou os olhos hipnóticos da criatura, que piscou para ele.
- Iza, essa estátua acabou de piscar pra mim.
- Há! Há! Tá, Alonso, tá – falou com deboche.
O homenzinho aproveitou a descrença da mulher e começou a mexer as mãozinhas uma vez mais, roçando um dedo no outro rapidamente, como uma criança prestes a aprontar. Alonso puxou a camiseta da esposa aflito e gritou:
- Olha lá!
- O quê, Alonso?
- Ele tá mexendo as mãozinhas de novo!
- Para com essa brincadeira de quinta série – falou brava, Iza.
Ela não entendia. Ele podia jurar que viu as mãozinhas se mexendo. Ele devia estar delirando mesmo, não dormiu muito bem na noite passada por causa da diferença de altitude. Havia lido que Bogotá é a terceira capital mais alta do mundo a dois mil seiscentos e quarenta metros acima do nível do mar. Devia ser isso, a altitude, aumentando suas frequências respiratória e cardíaca. Devia ter seguido o conselho do amigo e ter mascado uma folha de coca. Ou será que ele fez isso e por isso estava vendo coisas? Não teria como saber; a confirmação só viria no dia seguinte depois de ter comido muitos doces. Esqueceu um pouco o “mãonipulador” e continuou a leitura:
“O ourives, mas também o mineiro, transformou os materiais fornecidos pela natureza para criar estas obras de arte intemporais que as tornam dignas de admiração. Também entre suas comunidades antigas eram considerados sábios e às vezes xamãs.”
“Será que esse carinha é um xamã querendo me passar alguma mensagem? Será que ele quer me colocar em contato com a finada tia Vera? Justo ela? Poderia ser o tio Frederico que era mais legal... ele me deixava andar na garupa da moto quando eu era moleque... a tia Vera sempre me esmagava com abraços suados e me fazia comer fígado, argh”. Após alguns segundos delineando o pensamento não resistiu. Mirou uma vez mais a estátua. Ele estava mexendo as mãos. “Não! Não é isso!”, disse a si. Reparou em algo muito esquisito; ele não estava mexendo, ele estava freneticamente...
- Coçando o saco! – esperneou, Alonso.
- Que isso, Alonso, tá doido? – respondeu Iza.
- Juro pra você que não tô louco. Esse pigmeu tarado fica mexendo nos eggs.
E a criaturinha, como com dermatite aguda, continuava a sacudir e a sacudir as redondezas inferiores; se tivesse unhas já teria feito cortes profundos.
- Alonso, se continuar com isso vou embora daqui sem você. Eu te amo, por enquanto, mas não me provoque.
E agora o anão rochoso pegava no saco e puxava como se fosse um chiclete rosa de má qualidade, que esticava em linha fina em máxima envergadura do abrir de braços. Tautócrono ria, desdenhando o visitante.
Apertou as pálpebras algumas vezes para garantir que estava acordado. O safadinho parecia imóvel. Não querendo a extinção do matrimônio, Alonso desistiu de tentar convencer a esposa e ateve-se a persuadir-se à realidade através de nova leitura.
“A sua visita leva, em geral, de uma a duas horas. Cada vez que você vier, será surpreendido por diferentes obras que chamarão sua atenção, para que possa voltar novamente.”
Não. Definitivamente não tinha vontade de voltar naquele lugar. Sua cabeça era mole e com certeza sonharia com o monstrengo à noite, em que suas próprias mãos virariam pedra e não conseguiria mais pegar a alça da xícara de café ou algo mais trágico até; toda sua despensa estaria petrificada e não conseguiria mais comer. Por que todos seus pesadelos baseavam-se em comida ele não sabia explicar.
Saíram do museu. O esposo secava o delírio com as costas das mãos.
- Vamos, Alonso, senão não teremos tempo de subir o Monserrate – disse, Iza, enganchando seu braço ao dele.
Ele seguiu seu caminhar. Monserrate era o principal e mais alto morro de Bogotá, que permitia uma vista incrível da cidade. Colocou a mão no bolso para pegar os ingressos do teleférico, mas encontrou algo áspero, maior e mais duro. Eram as bolas do nojentinho embrulhadas em uma folha de coca.
Amei! Nooooooossa kkkkkkkkkkk. Meu estilo esse